quarta-feira, 20 de maio de 2009

DONNA

DONNA
(um conto ou princípio de argumento cinematográfico)

Prólogo

Acabamos de voltar do enterro Dele. Todos me olham com sentimento de alívio. Talvez alguns ainda esperem que Ela apareça – não por maldade – como se desejassem o meu confronto com a vida que levamos nos últimos quarenta anos. Sinto nesse momento muita raiva e amor em igual medida. Sinto que tudo me pertence e que, não posso e não desejo dividir essas horas com mais ninguém - a minha dor por ele ter partido e me deixado aqui - mesmo que esse alguém seja parte de mim mesma.
Para Ela, o fato de seu amante ter morrido é algo que lhe custa apenas as horas vagas que não se preencherão mais. Para mim, custa a vida diária que se foi no momento em que ele fechou os olhos.
Ele não chamou por Ela nos seus últimos instantes. Não cometeu a indelicadeza de pedir sua presença, pois sabia que todos, filhos, netos e bisnetos, estavam ávidos pelo descortinamento. Ele foi íntegro, e , mesmo seus olhos – que me pediam a presença Dela - tornaram-se calmos quando eu lhe disse:
- Ela pediu que te avisasse que não virá e que você entenderia o porquê.
No momento seguinte à minha fala tudo se apagou. Para mim, para Ele e para Ela. Foi como se estivesse morrendo toda uma vida de verdades irreais. Todo um sentido existencial, que, só se fez por conta de um - sejamos sinceros – por conta de um acaso.

O Teatro
Noite de quarta-feira de 1931.
O teatro está lotado. Estou me preparando para entrar em cena. Últimos retoques, coloco a peruca negra.
Primeiro sinal;
Fecho o zíper do vestido turquesa.
Segundo sinal;
Me dirijo à boca de cena, na total e absoluta penúmbra.
Terceiro sinal;
Respiro fundo e as luzes se acendem.
Agora estou eu, representando em frente à mais de mil espectadores: Natasha.
As luzes da ribalta ofuscam minha visão, não consigo enxergar os presentes, mas sei que Ele está alí, logo na terceira fileira – cadeira B13.
Todos os dias Ele se senta na cadeira B13.
É Carlos quem está sentado me vendo interpretar o imenso monólogo de Natasha.
Ontem recdebi flores de um "gentil admirador". No cartão estava escrito:

À encantadora Natasha, que tem preenchido as minhas noites como a lua cheia, ofuscando toda e qualquer estrela ao seu redor .

Fiquei tão curiosa que acabei sendo indiscreta e me coloquei a procurar o camareiro receptor do lindo buquê de lírios.
Infelizmente não o encontrei. Porém na semana seguinte recebi outro ramalhete de lírios brancos, seguido das seguintes palavras:

Srta. Natasha, gostaria de lhe convidar para um aperitivo no Hotel Estúrias, estarei lá a partir das 23hs.


Eu imediatamente segurei no braço do camareiro e lhe pedi que identificasse o cavalheiro que, pela segunda vez, enviava flores à Natasha. O camareiro tremeu ao ouvir minhas súplicas mas se negou a identificá-lo.
Fiz a peça e logo depois, ainda tirando a maquiagem, resolvi sair para jantar – não costumo jantar, até hoje, mas naquele tempo, após sair do palco, sentia uma fome de elefanta e meu primeiro desejo era devorar um prato de macarrão ao sugo, com uma enorme taça de vinho rosé no Camarada`s – bar tradicional que ficava em frente ao Teatro Maior, local onde me apresentava com frequência. Ali, encontrava sempre os amigos e inimigos. Conversávamos sobre tudo, menos sobre a arte, pois como dizia um amigo meu:
- Quem fala de arte é banqueiro, nós artistas falamos de dinheiro.
O termo boemia naquela época soava como transgressão, e eu aos dezenove anos fazendo Natasha Nerontchkovicht no Teatro Maior, era a culminância dessa atidude transgressora.
Natasha foi escrita por Leon Svicht no final do século XIX e é uma personagem que fariam Madame Bovary ou Lolita parecerem duas crianças enfadonhas.
Não só pela descrição física – na qual eu cabia perfeitamente – mas principalmente pelas atitudes de gata traiçoeira, indomável e em cio constante. O que, segundo a crítica da época, fazia o texto soar como "pornografia revestida de dramaturgia de altíssimo nível". Para nós a crítica soava como um elogio, mas para os leigos, era como se todos estivessem interessados apenas na pornografia de alto nível. Lotávamos o Teatro Maior de terça à domingo. Todas as noites. Sabíamos que muitos vinham mais de uma vez por semana. Natasha era sucesso absoluto.
Ela preferia ser humilde e não à sua altura que era enorme: Lóri sentia que era um enorme ser humano. E que devia tomar cuidado. Ou não devia?