DONNA
(um conto ou princípio de argumento cinematográfico)
Prólogo
Acabamos de voltar do enterro Dele. Todos me olham com sentimento de alívio. Talvez alguns ainda esperem que Ela apareça – não por maldade – como se desejassem o meu confronto com a vida que levamos nos últimos quarenta anos. Sinto nesse momento muita raiva e amor em igual medida. Sinto que tudo me pertence e que, não posso e não desejo dividir essas horas com mais ninguém - a minha dor por ele ter partido e me deixado aqui - mesmo que esse alguém seja parte de mim mesma.
Para Ela, o fato de seu amante ter morrido é algo que lhe custa apenas as horas vagas que não se preencherão mais. Para mim, custa a vida diária que se foi no momento em que ele fechou os olhos.
Ele não chamou por Ela nos seus últimos instantes. Não cometeu a indelicadeza de pedir sua presença, pois sabia que todos, filhos, netos e bisnetos, estavam ávidos pelo descortinamento. Ele foi íntegro, e , mesmo seus olhos – que me pediam a presença Dela - tornaram-se calmos quando eu lhe disse:
- Ela pediu que te avisasse que não virá e que você entenderia o porquê.
No momento seguinte à minha fala tudo se apagou. Para mim, para Ele e para Ela. Foi como se estivesse morrendo toda uma vida de verdades irreais. Todo um sentido existencial, que, só se fez por conta de um - sejamos sinceros – por conta de um acaso.
O Teatro
Noite de quarta-feira de 1931.
O teatro está lotado. Estou me preparando para entrar em cena. Últimos retoques, coloco a peruca negra.
Primeiro sinal;
Fecho o zíper do vestido turquesa.
Segundo sinal;
Me dirijo à boca de cena, na total e absoluta penúmbra.
Terceiro sinal;
Respiro fundo e as luzes se acendem.
Agora estou eu, representando em frente à mais de mil espectadores: Natasha.
As luzes da ribalta ofuscam minha visão, não consigo enxergar os presentes, mas sei que Ele está alí, logo na terceira fileira – cadeira B13.
Todos os dias Ele se senta na cadeira B13.
É Carlos quem está sentado me vendo interpretar o imenso monólogo de Natasha.
Ontem recdebi flores de um "gentil admirador". No cartão estava escrito:
À encantadora Natasha, que tem preenchido as minhas noites como a lua cheia, ofuscando toda e qualquer estrela ao seu redor .
Fiquei tão curiosa que acabei sendo indiscreta e me coloquei a procurar o camareiro receptor do lindo buquê de lírios.
Infelizmente não o encontrei. Porém na semana seguinte recebi outro ramalhete de lírios brancos, seguido das seguintes palavras:
Srta. Natasha, gostaria de lhe convidar para um aperitivo no Hotel Estúrias, estarei lá a partir das 23hs.
Eu imediatamente segurei no braço do camareiro e lhe pedi que identificasse o cavalheiro que, pela segunda vez, enviava flores à Natasha. O camareiro tremeu ao ouvir minhas súplicas mas se negou a identificá-lo.
Fiz a peça e logo depois, ainda tirando a maquiagem, resolvi sair para jantar – não costumo jantar, até hoje, mas naquele tempo, após sair do palco, sentia uma fome de elefanta e meu primeiro desejo era devorar um prato de macarrão ao sugo, com uma enorme taça de vinho rosé no Camarada`s – bar tradicional que ficava em frente ao Teatro Maior, local onde me apresentava com frequência. Ali, encontrava sempre os amigos e inimigos. Conversávamos sobre tudo, menos sobre a arte, pois como dizia um amigo meu:
- Quem fala de arte é banqueiro, nós artistas falamos de dinheiro.
O termo boemia naquela época soava como transgressão, e eu aos dezenove anos fazendo Natasha Nerontchkovicht no Teatro Maior, era a culminância dessa atidude transgressora.
Natasha foi escrita por Leon Svicht no final do século XIX e é uma personagem que fariam Madame Bovary ou Lolita parecerem duas crianças enfadonhas.
Não só pela descrição física – na qual eu cabia perfeitamente – mas principalmente pelas atitudes de gata traiçoeira, indomável e em cio constante. O que, segundo a crítica da época, fazia o texto soar como "pornografia revestida de dramaturgia de altíssimo nível". Para nós a crítica soava como um elogio, mas para os leigos, era como se todos estivessem interessados apenas na pornografia de alto nível. Lotávamos o Teatro Maior de terça à domingo. Todas as noites. Sabíamos que muitos vinham mais de uma vez por semana. Natasha era sucesso absoluto.
A Flor de Lapela
Há 6 anos
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